Mercado e Tecnologia
15 Dez 202520 min read

Mercado de Tecnologia: minerando no escuro desde sempre

TI nunca foi um porto seguro; ela apenas pareceu estável por uma década. Hoje, vivemos a conta dessa ilusão. Deixamos de ser artesãos de código insubstituíveis para nos tornarmos peças de um 'Lego corporativo', onde a fragmentação técnica tornou a substituição barata. Uma reflexão honesta sobre a instabilidade da área, o fim da corrida do ouro e por que ainda insistimos em minerar no escuro.

James

James

Backend developer passionate about building scalable systems and sharing knowledge.

Tenho ouvido isso com uma frequência assustadora nos últimos meses. Gente próxima, gente distante, devs experientes, profissionais de infraestrutura, pessoal de IoT, dados, segurança. Pessoas boas. Pessoas que estudaram, se atualizaram, entregaram resultado. Saindo da área de TI ou, no mínimo, flertando seriamente com a ideia.

O motivo quase sempre é o mesmo: instabilidade.

E aqui vai a primeira verdade que pouca gente gosta de falar em voz alta: TI nunca foi uma área estável. Ela só pareceu estável por alguns períodos muito específicos da história.

Hoje a gente vive mais um momento em que a conta chegou.


A falsa sensação de estabilidade

Durante muito tempo, principalmente ali entre 2010 e 2020, criou-se a narrativa de que tecnologia era o “porto seguro”. Faltavam profissionais, salários subiam rápido, qualquer empresa precisava de dev, qualquer startup parecia promissora.

A pandemia intensificou isso de forma artificial.
Empresas contrataram como se o crescimento infinito fosse garantido. Times inflados, salários fora da curva, promessas de “pleno em seis meses”. Parecia uma corrida do ouro.

Mas quem já leu um pouco de história sabe: toda corrida do ouro termina.

Isso já aconteceu antes.

  • Estouro da bolha das ponto-com no começo dos anos 2000
  • Crise de 2008, que afetou forte o setor de tecnologia corporativa
  • Agora, o pós-pandemia, com juros altos, menos investimento e empresas voltando ao modo sobrevivência

O mercado de TI é cíclico. Sempre foi.

A diferença é que agora ele está fragmentado como nunca.


Antes era caro demitir alguém de TI

Teve um tempo em que demitir um profissional de tecnologia era quase um tiro no pé.

Cada dev fazia tudo do seu jeito.
Não existia padrão.
Documentação era luxo.
Código limpo era exceção.

Foi daí que nasceu o famoso código legado e as gambiarras históricas. Sistemas que só uma pessoa entendia. Programas que ninguém ousava mexer porque “se quebrar, só o João sabe arrumar”.

Isso dava poder ao profissional.
E custo para a empresa.

Hoje não.


A fragmentação mudou tudo

Hoje a área virou um grande Lego corporativo.

Você não é mais “o cara da TI”.
Você é backend. Ou frontend. Ou DevOps. Ou SRE. Ou data engineer. Ou security analyst.

Cada peça isolada. Cada função bem definida. Cada responsabilidade documentada em tickets, pipelines, runbooks e playbooks.

Do ponto de vista técnico, isso trouxe ganhos enormes.
Do ponto de vista humano, trouxe uma consequência direta:

ficou barato substituir pessoas.

Se um backend sai, entra outro backend.
Se um DevOps sai, entra outro DevOps.
O produto continua rodando.

E agora existe um agravante importante que não dá mais para ignorar: a Inteligência Artificial.

Com a IA escrevendo boilerplate, sugerindo código, revisando pull requests e acelerando tarefas repetitivas, a confiança das empresas em operar com times menores aumentou drasticamente. A IA virou o grande acelerador dessa commoditização do trabalho técnico. A narrativa do “fazer mais com menos” nunca teve uma justificativa tão forte quanto agora.

Isso não significa que a IA substitui pessoas.
Mas significa que ela reduz a necessidade de tantas peças no tabuleiro.

CNPJ não tem coração.
Ele tem SLA, margem e custo.

Isso transforma a carreira em uma verdadeira corda bamba.

Você pode ter mais de 10 anos de experiência e ainda assim passar meses desempregado.
Ou conseguir um emprego novo, mas com salário abaixo do que ganhava antes.

E não, isso não significa que você “ficou ruim”.
Significa que o mercado mudou de humor.

De novo.


Como as pessoas entraram na TI em cada época (e por que isso importa)

Talvez o erro seja achar que sempre existiu um “caminho certo” para construir carreira em tecnologia. Não existiu. Cada geração entrou de um jeito diferente, empurrada pelas circunstâncias da época.

Lá atrás, nos anos 60 e 70, o pessoal que trabalhava com computação nem se chamava de “dev”. Eram matemáticos, físicos, engenheiros. Alan Turing não escolheu TI como carreira, ela simplesmente não existia. Ele queria resolver problemas matemáticos e acabou criando as bases da computação moderna no meio do caminho.

Nos anos 80 e 90, muita gente entrou porque tinha um computador em casa. Programava em BASIC, Pascal, Assembly, não por carreira, mas por curiosidade. Eram autodidatas por necessidade. Curso bom era raro, documentação era livro físico ou revista. Quem persistia, virava referência.

No começo dos anos 2000, com a popularização da internet, surgiu a geração do “web developer”. HTML, CSS, PHP, Java. Muita gente aprendeu fazendo site para comércio local, blog, fórum. A bolha das ponto-com estourou, muitos saíram da área, outros ficaram calejados e seguiram.

Entre 2010 e 2020 veio a era dos frameworks, startups e da promessa do crescimento infinito. Bootcamps, cursos rápidos, carreiras aceleradas. Muita gente entrou atraída por salário e demanda. Funcionou por um tempo. Agora estamos vendo o ajuste.

Nenhuma dessas gerações estava errada. Todas só reagiram ao contexto histórico em que viviam.

E isso ajuda a entender por que hoje tanta gente está cansada, frustrada ou repensando tudo.


O tal do “Grande Rollback”

Nos últimos tempos, muita gente começou a falar de algo chamado Great Rollback. Uma espécie de movimento de volta ao essencial.

Menos frameworks.
Menos complexidade desnecessária.
Times menores.
Mais cobrança por produtividade real.

Em teoria, isso poderia devolver poder à TI dentro das empresas.

Na prática, também pode significar outra coisa:
mais responsabilidade concentrada em menos gente.

Menos pessoas fazendo mais trabalho.
Menos margem para erro.
Mais pressão silenciosa.

E, novamente, a IA entra como pano de fundo constante. Ela não cria esse movimento, mas legitima ele. Se a máquina ajuda a escrever código, revisar lógica e acelerar entregas, a expectativa sobre o ser humano sobe automaticamente. O problema não é a ferramenta, é o uso que o mercado faz dela.

Não é exatamente um paraíso.


Quando o código vira commodity, sobra o humano

Existe um detalhe que muita gente ignora nesse cenário todo.

Quando a técnica vira Lego, o que diferencia o profissional não é mais só o código.

É a capacidade de conversar, negociar, explicar, alinhar expectativas, entender contexto e lidar com pessoas. Soft skills deixam de ser discurso de RH e viram mecanismo real de sobrevivência. Quem costuma resistir mais à “troca de peças” geralmente é quem sabe se mover socialmente dentro das empresas.

Network, comunicação e leitura política do ambiente passam a valer tanto quanto saber programar. O código ficou mais fácil de substituir. Pessoas que sabem lidar com pessoas, não.


Tecnologia sempre foi um ciclo estranho

Desde Alan Turing, essa área funciona assim.

Avanços rápidos.
Promessas gigantes.
Crises profundas.
Recomeços.

É uma mina de ouro onde as luzes estão sempre apagadas.

Você nunca sabe exatamente se o próximo passo vai te levar a uma veia rica ou a um desabamento.

E, sendo bem honesto, você precisa ser um pouco louco para escolher ficar aqui.

Se a sua única motivação for dinheiro, eu sinto muito dizer, mas as chances de frustração são altas.
Quem ganha bem e dorme tranquilo, na maioria das vezes, são empreendedores.
E mesmo eles não têm garantia nenhuma.


Por que eu continuo então?

Porque eu gosto de resolver problemas.

Simples assim.

E porque, apesar de tudo, novas demandas continuam surgindo.
Novas áreas aparecem.
Outras se esgotam.

Eu mesmo já falei em outro artigo que estou focando mais em HPC e engenharia de desempenho. Não porque é fácil. Mas porque é onde vejo profundidade, dificuldade real e menos modismo.

Isso não é um conselho universal.
É só o caminho que fez sentido para mim.


E se você quiser sair, está tudo bem

Essa talvez seja a parte mais importante.

Se você decidir sair da área de TI, você não está fracassando.

O que você aprende aqui não se perde.

Já vi gente que saiu da computação e virou contador, advogado, professor, gestor. E todos eles continuam usando, de alguma forma, o raciocínio lógico, a capacidade analítica e a forma de resolver problemas que aprenderam na tecnologia.

TI não te prende.
Ela te transforma.


O que eu posso dizer no fim das contas

Estabilidade não é o ponto forte da área de tecnologia.
Pelo menos não na maior parte do tempo.

Quem fica, fica porque gosta do processo.
Porque aceita a incerteza.
Porque entende que isso aqui é, em grande parte, uma aposta contínua.

Não tenho uma resposta clara sobre como se preparar para tudo o que pode acontecer.
Se eu disser que tenho, estaria mentindo.

É mineração no escuro.
Sempre foi.

Então, se você decidir continuar cavando, só posso dizer uma coisa:

boa sorte para todos nós que escolhemos continuar minerando no escuro.

BackendPerformanceArchitecture

Share this article